A Nossa História
“A minha mãe me ensinou que trabalho nunca matou ninguém.”
Da receita do cabrito, das natas do céu, até como cuidar de um negócio: tudo eu aprendi com ela.
Meus pais não tinham muito. Foram ao Brasil fazer algum dinheiro, trabalhando no herdado de uns primos. Quando voltaram para cá, decidiram cuidar de uma terrinha que tinha ficado da família da minha mãe, em Santa Luzia.
A terra era até fértil para cultivo, mas no sítio não se passava nada além da Estrada Nacional, de uma feira de gado, que acontecia duas vezes por mês, e de uma capelinha, onde a minha mãe fazia as suas orações.
Uma Verdadeira Inconformada.
Maria Ferreira Rama
Ela usava os cruzados que fez quando trabalhou no Brasil para comprar os terrenos à volta. Muitas vezes, meu pai nem ficava a saber. Só descobria depois da transacção feita – e é por isso que as terras de Santa Luzia quase todas pertenciam à minha família.
A minha mãe queria sempre mais: tinha uma visão que não sei se já vi em outra mulher. E bastou que ela olhasse pela janela para enxergar uma oportunidade que não se havia visto até então:
Os inúmeros viajantes que passavam pela Estrada de Santa Luzia a fazer o caminho Porto-Lisboa (e vice-versa) e que, estafados – dada a lonjura do trajeto – precisavam repousar em algum sítio.
Servindo-se da agricultura familiar e da produção de vinho à qual meu pai, Guilhermino, se dedicava, eles montaram o que era uma fusão entre mercearia, casa de pasto e taberna – que abria para refeições nos dias da feira -, batizada de “Fundadora de Santa Luzia”.
Na verdade, este era o nome oficial. Mas ninguém chamava o sítio assim. Os viajantes o apelidaram de “Casa da Dona Marquinhas”, porque, para eles, era mesmo casa: a comida, bebida e as acomodações eram simples, mas preparadas com muito empenho e cuidado. Minha mãe os recebia como se fossem mesmo filhos.
Lilé a trabalhar...
“Eu não sou como minha mãe, nunca tive essa gana de empreender.”
Lilé jovem
Durante algum tempo, trabalhei na Singer, como formadora, e gostava muito. Mas só podiam exercer a função as mulheres solteiras e, quando me casei com o Manuel Júlio, tive de largar.
Meu marido, ao contrário de mim própria, sempre me incentivou a tocar o empreendimento da família. Ele tinha uma ideia fixa de que faleceria cedo e que, por isso, eu deveria ser independente e ter a minha própria renda. Eu nunca dei muita confiança para isto, mas segui o conselho.
Então, entendi que seria mais estratégico transformar a “pensão” em um restaurante. Afinal, na altura, já havia, em Santa Luzia, pessoas com dinheiro e viajantes que ali passavam por turismo – não só por necessidade. Então, deixamos de ter aquela cozinha de tasca e começámos a servir a comida tradicional portuguesa de uma forma um bocado mais refinada.
A partir daí, comecei a servir o cabrito, que tornou-se o prato mais elogiado e o carro-chefe da Casa. Assim, o espaço foi crescendo e consolidando-se como uma referência na região pela comida regional cuidada e saborosa e pelo atendimento ao cliente como se ele fosse de Casa: tal como minha mãe me ensinou.
Lilé e sanfonista
As pessoas nos conheciam pelo cabrito, mas ficavam por todos os outros pratos.
Para mim, era proibido que alguém saísse dali sem estar bem-servido.
Na altura, mudou-se também o nome do restaurante. Manuel Júlio foi quem tratou de registar. Ele queria que levasse o meu nome, mas não deixaram. Não era comum colocar o nome das mulheres nos negócios. Então, teve de registar no dele próprio.
Algum tempo depois, aos 46 anos e cumprindo sua própria profecia, Manuel Júlio faleceu, deixando a mim e dois filhos.
Assim, o nome desta Casa, que até então havia sido escolhido por pura formalidade, se manteve como uma homenagem minha ao meu parceiro de vida.
E a minha forma de lidar com o luto foi continuar a trabalhar.
Eu fazia tudo. Ementas, comida, atendia os clientes… ocupava meu dia com o restaurante para não ter que pensar muito na minha perda. É difícil falar disso, mas é o que é. E foi assim, com muito trabalho, que o restaurante passou a bater recordes, ano após ano. Era reconhecido como um dos melhores da Bairrada.
Entretanto, em 1994, um incêndio levou o restaurante ao chão.
Perdemos tudo. Mas pensei: “se a minha mãe construiu isto do zero, eu também o farei”. E fiz. Desta vez, com a ajuda dos meus dois filhos, Manuel e João Paulo, já crescidos e com filhos. Foram 200.000 contos de empréstimo, na altura. É engraçado como não me esqueço dos valores… acho que peguei isso do meu marido, que era bancário. Reconstruímos tudo e ampliamos o espaço para servir 500 pessoas, a fim de produzir mais, vender mais e quitar a dívida.
“Pagamos o valor, que equivale hoje a cerca de 1 milhão de euros, nos primeiros dos anos que se seguiram. E digo sem falsa modéstia:
“Não foi sorte. Foi trabalho. Foi o compromisso de todos em manter viva a cozinha tradicional portuguesa”.
O compromisso de proporcionar aos clientes o sabor da comida familiar. Sim, mesmo essa, cujo modo de preparar fica gravado no livro de receitas da avó…
De fazer com que quem vem ao Manuel Júlio se sinta em sua própria Casa.
De selecionar, a dedo, cada ingrediente, e privilegiar os nossos fornecedores da região. Porque é com atenção aos detalhes que se faz boa comida.
De fazer permanecer, por quase 100 anos, a herança gastronômica, familiar e afetiva que deixaram meus pais, em cada mesa que aqui está.
E eu, já do alto, vejo que meu desejo tem sido cumprido – pelo meu querido filho Paulo, meu amado neto Manuel e por cada um da equipa que mantém a funcionar o projeto e propósito da minha vida.
A nossa Casa está sempre de portas abertas. Seja muito bem-vindo. E desfruta!
Com carinho,
Maria Amélia Rama. ‘Lilé’
Lilé, a segunda proprietária do restaurante Manuel Júlio, faleceu em 2021. Hoje, ele é gerido com muito empenho e carinho por Paulo e Manuel Rama. Este texto é uma homenagem e traz a versão dela da história do restaurante, a qual ela sempre gostou de contar.
Aqui na nossa casa, valorizamos a tradição da cozinha portuguesa, servindo pratos autênticos e repletos de sabor.